segunda-feira, 23 de setembro de 2013

4 - Carga genética?

Questionar se o fato de se ser otário tem características hereditárias é interessante. Não, não tenho nenhum estudo científico a citar. Se tal ocorresse, seguramente teria sido publicado na Nature, que é uma referência pessoal como revista científica séria, apesar de ter publicado o Experimento Pons e Fleishmann[1].
O meu questionamento, nada tem de científico, mas percorre o caminho do lúdico, para tentar rir da própria desgraça, e fazer as coisas parecerem engraçadas, como se fosse um filme, um storyboard[2].
Sempre que me recordo, da minha condição de otário praticante, como se fosse uma categoria intelectual/social, ou assemelhado, sempre chegam imagens da minha infância, onde com esmerada frequência, eu desempenhava o papel. Juntamente retornam imagens familiares onde algum membro da família fazia o papel.
Como falei em hereditariedade me referi a ter herdado a “otarimicina”[3]. Me recordo de alguns fatos vividos na infância e que parecem espelhar que a prática de se ser otário, já vem de gerações familiares anteriores.
Meu pai era bancário. E no banco onde trabalhava, um dia foi convidado a conhecer um novo loteamento que uma construtora, cliente do banco, estava construindo.
Me recordo que fomos lá conhecer. Cruzamos por Osasco, trafegando por boa parte da Avenida dos Autonomistas, que tinha trechos sem calçamento e chegamos no tal local. Era longe (tão tão distante, como nos desenhos do Sherek) mesmo, foram algumas horas para chegar lá.
Cabe lembrar que na época não havia a Rodovia Castello Branco. Me recordo que meu pai comentava que havia um plano antigo de construção da Rodovia do Oeste, que se supunha um dia seria construída.
No local do loteamento, havia uma maquete mostrando como iria ficar. Me recordo que achei muito bonita. Eu adorava maquetes. Até hoje gosto de admirar.
Naquele momento, que meu pai, ao ver os preços, chegou a pensar em comprar 3 lotes vizinhos e fazer uma chácara de final de semana. Tão baratos eram os lotes que dava para comprar 3!
Mas, ato contínuo, ele disse: “isto nunca vai pra frente, ainda mais neste lugar!”
Para encurtar a história, estávamos no lançamento do que viria a ser AlphaVille. E perdemos o bonde da história em termos de investimento.
Mas mesmo com este ocorrido, não cheguei a pensar em não ver meu pai como referência em conhecimentos financeiros. Afinal ele trabalhava em um grande banco! Tudo bem, o banco depois faliu, mas não foi culpa dele.
Anos depois, casado, morando naquela tal cidade pequena. Comentei com meu pai que estavam construindo um conjunto residencial na cidade. Em uma das visitas que ele me fez, de pronto me aconselhou a comprar uma.
Eu olhava o projeto e me parecia “uma fria”. Era uma casa de 3 quartos, com varanda, área de serviço, sala de dois ambientes e tudo isso dentro de uma área de 70 metros quadrados. Apenas como referência, na planta a área de “dependências de empregada” (sim, tinha mais isto), aparecia na planta abreviada como “dep. empreg”; nem na planta dava para escrever por extenso.
Acho que eu tinha “acessos de lucidez” quando me mostrava refratário a fazer tal investimento. Na verdade, inclusive, havia sido desaconselhado por amigos. Mas meu pai continuava com a sua pregação financeira. E eu, como nunca me considerei um gênio dos negócios, sempre escutava os conselhos de quem, naquela época, era meu consultor financeiro.
Recordo-me que em um dos momentos finais de minha “conversão”, fui seduzido pela frase: “meu filho, nunca ninguém perdeu dinheiro com imóvel!”
Aquilo parecia um mantra que eu deveria repetir até assinar o contrato, que me foi recomendado para fazer o mais longo possível.
E assim o fiz.
Era um tal de “Plano de equivalência salarial”, que garantia que as prestações não subiriam além do que subiria a minha remuneração. Tudo isso, me fazia sentir um grande investidor, que graças à consultoria, dava os primeiros passos para o sucesso.
Acho que com o tempo, os “acessos de lucidez” foram ficando mais frequentes e comecei a perceber a “cagada” (ainda que seja um termo chulo, ele me parece adequado à minha situação de então) que tinha feito.
O tal conjunto de casas ficava ao lado de uma estrada de ferro que transportava minério. Com composições de uma centena de vagões. Acho que fica fácil perceber que a casa tinha uma “condição diferenciada de estabilidade”, de forma que eu não precisaria adquirir uma cama vibratória.
Como se tal não bastasse, após receber as chaves, as prestações começaram a subir mais do que o meu salário. O que comprometia apenas 8% dos meus ganhos, em menos de dois anos já ultrapassava um terço.
Fui reclamar no BNH[4] reclamar. Juro que fui acreditando que iria resolver o problema. E saí de lá com vontade de relinchar. Me falaram de fatores de correção, e justificaram que o aumento estava dentro do pactuado.
Aqueles 50 km até chegar em casa, foram longos. Eu alternava estados depressivos com momentos de desespero, enquanto dirigia.
Para chegar na minha casa, eu passava por uma avenida que dava visão para o tal conjunto residencial. Eu virei a minha cabeça para o lado para não ver. Foi a forma que encontrei naquele momento para não me sentir ainda mais otário.
Ao chegar em casa, minha primeira reação foi a de bater a cabeça na parede. Minha esposa achou por demais estranho. Eu expliquei para ela. Ela tentou me acalmar, mas eu tinha a nítida sensação de que ela pensava “eu sabia que ia dar merda”.
Pensei que a primeira saída seria de alugar a casa. Cabe aqui dizer algo a meu favor. Eu nunca fui morar na tal casa! Ao menos isto indica que eu tinha percebido a fria em que tinha entrado.
Comecei a consultar. Eu pagava de prestação Cr$ 65.000 (sessenta e cinco mil cruzeiros[5]) e o máximo que eu conseguiria de aluguel era de Cr$ 15.000 (quinze mil cruzeiros). Estava evidente que eu precisava me livrar do “abacaxi”.
Meu estado de desespero era tanto, que eu, que já havia pago Cr$ 1.200.000 (um milhão e duzentos mil cruzeiros), estava disposto a passar a casa para alguém que fosse mais otário que eu, de graça.
Eu até fiquei feliz quando soube que havia uma pessoa disposta a adquirir o imóvel e ainda me daria Cr$ 400.000 (quatrocentos mil cruzeiros). Eu achava que estava no lucro!!
Fechei o negócio na hora. Mas como para transferir o financiamento para o nome dele era caríssimo, fizemos um “contrato de gaveta” de forma que terminado o prazo do financiamento o imóvel seria passado para o nome dele.
Voltei a dormir. E quando ia para casa até tinha coragem de olhar para o conjunto residencial ao longe. Dava até uma risadinha do tipo “viu como você foi esperto!”.
Mas “alegria de otário dura pouco”[6]. Logo o comprador não conseguia mais pagar as prestações e começaram a chegar as cobranças em meu nome.
Ingenuamente fui ao BNH, com o contrato de gávea na mão, explicar a situação. O pessoal do banco até que foi gentil e me explicou que o único mutuário[7] que eles conheciam era eu, e era de quem deveriam cobrar o atraso.
Novamente aquela vontade de relinchar voltou. Saí andando pela cidade meio que sem rumo. Mas como tinha um trabalho a fazer em uma corretora de valores, passei por lá e comentei o fato com um colega. Ele, solidariamente me falou que tinha um amigo advogado no andar inferior que poderia me mostrar os caminhos.
Depois de contar toda a situação, o advogado disse “Seu caso é muito simples! Você recupera a casa no momento em que quiser!”.
Eu expliquei que o que eu queria era obrigar a pessoa a ficar com a casa e pagar. Notei certa estranheza na face dele.
Ele me explicou que se o comprador não quitasse a dívida, a casa iria para leilão e como não conseguiriam vender a casa pelo valor do saldo devedor eu ficaria impedido de fazer novo financiamento imobiliário.
E me citou o exemplo do divórcio[8], dizendo que a lei deve proteger os incautos (no caso, eu). A pessoa pode se casar e ter errado. Então existe o divórcio. Mas só é permitido um divórcio, como forma de evitar que o cidadão cometa erros sequenciais.
Não vou dizer que aquela explicação me deixou com a autoestima em estado de elevação. Muito pelo contrário! Mas não ficou por aí!
Ele continuou: “vejo que você é uma pessoa ingênua, não vá agora você comprar um consórcio!”.
Senti a coluna vertebral gelar! Eu havia comprado um consórcio havia duas semanas. E por recomendação de meu consultor financeiro! Claro, fiquei calado para não “passar recibo”, e saí apressadamente de lá.
Voltei para casa e contei tudo para minha esposa. Ela foi extremamente sincera comigo. “Eu acho que você deveria destituir seu pai do cargo de consultor financeiro!” Foi o que eu fiz!
Naquela época tive de reavivar a teoria do ineditismo. Como meu pai havia garantido que nunca ninguém havia perdido dinheiro com imóvel, então eu havia sido o primeiro!
Desde então, imóveis e consórcio passaram a ser tabu na minha vida.



[1] Experimento de Fusão Nuclear a Frio, que é considerado por muitos como um fiasco ou mesmo um embuste.
[2] Storyboard são organizadores gráficos tais como uma série de ilustrações ou imagens arranjadas em sequência com o propósito de pré-visualizar um filme, animação ou gráfico animado, incluindo elementos interativos em websites.
[3] Termo lúdico que criei para explicar a estranha habilidade para o papel. Seria imaginariamente um componente químico que daria maior ou menor capacidade de se ser otário.
[4] BNH – Banco Nacional da Habitação – agente financeiro do governo federal.
[5] Padrão monetário da época
[6] Releitura pessoal do ditado “alegria de pobre dura pouco”
[7] Pessoa que fez o financiamento imobiliário
[8] O divórcio era uma novidade recém-aprovada no país

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